Profissionais de diversas partes do brasil traçam panorama da cirurgia plástica pós-bariátrica, falam do avanço da técnica na última década e da situação crítica de remuneração nos sistemas público e privado

Por Lucilene Oliveira

Era início dos anos 1990, o avanço tecnológico da cirurgia plástica se consolidava e o mundo via a obesidade se estabelecer como uma epidemia globalizada, com o Brasil ocupando uma das posições de liderança nessa indesejada lista. Foi em meio a esse cenário que a cirurgia plástica pós-bariátrica ganhou força e atraiu a atenção de especialistas do País inteiro, que lotaram a sala, até com cirurgiões sentados no chão, do primeiro curso do Capítulo de Pós-Bariátrica, no 42º Congresso Brasileiro de Cirurgia Plástica, realizado em 2005, em Belo Horizonte (MG). Um procedimento que sequer existia há 30 anos dominou a especialidade na última década do século 20 e foi pano de fundo para a evolução técnica dos cirurgiões brasileiros, que tinham nas mãos a importante missão de devolver a autoestima para pacientes recém-submetidos à cirurgia bariátrica.

Os anos se passaram e a obesidade se agravou, tornando-se um dos maiores problemas de saúde pública do planeta: a Organização Mundial da Saúde (OMS) projeta que, em 2025, cerca de 2,3 bilhões de adultos estarão com sobrepeso no mundo (hoje, mais de 700 milhões de pessoas estão obesas). A estimativa leva em conta que, somente em 2017, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), 105.642 cirurgias bariátricas foram realizadas em todo o território nacional. O cálculo da demanda considera que o paciente, após ser submetido à bariátrica, precisa fazer, em média, duas cirurgias pós-bariátricas. Uma demanda que chega a 200 mil operações por ano em todo o País. Se feita uma proporção, esses números gerariam uma demanda de aproximadamente 550 cirurgias plásticas pós-bariátricas por dia no Brasil.

“Apesar de a cirurgia ser reparadora e considerada de risco, devido ao paciente estar com o organismo debilitado, apenas a dermolipectomia abdominal faz parte do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o que leva os planos de saúde a incluir em sua cobertura apenas a retirada do excesso de pele do abdômen, ainda assim com uma remuneração insuficiente para custear adequadamente toda a intervenção cirúrgica”, afirma o cirurgião plástico e editor da revista Plastiko´s, André Cervantes. Já o professor Élvio Bueno Garcia, da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também chama a atenção para o acentuado risco de complicações durante a operação, já que o paciente possui amplo histórico de comorbidades. “A cirurgia tem um índice de complicação muito alto, e é nesse sentido que a comunidade médico-científica atua há 10 anos para obter mais sucesso com menos taxas de complicações.”

“A cirurgia tem um índice de complicação muito alto, e é nesse sentido que a comunidade médico-científica atua há 10 anos para obter mais sucesso com menos taxas de complicações.”

Élvio Bueno Garcia
Professor da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Em meio ao cenário apresentado, duas importantes discussões estão em voga na Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). A primeira é sobre a necessidade de aumento da remuneração da cirurgia abdominal pelos planos de saúde, seguido da necessidade de incorporação do procedimento nas demais áreas do corpo. No primeiro cenário, o pagamento entre R$ 600,00 e R$ 900,00 – ao cirurgião plástico pela abdominoplastia faz com que profissionais mais experientes recusem o atendimento.

Assim, os que se submetem a esse patamar de remuneração são, muitas vezes, os que estão em início de carreira após a residência médica e vislumbram uma oportunidade de ganhar experiência cirúrgica e ter volume operatório. A prática, no entanto, ocasiona aumento da taxa de intercorrências durante o procedimento, elevando custos para as operadoras de saúde. Já a segunda discussão encampada pela Sociedade consiste em demonstrar à ANS a importância da incorporação no rol de procedimentos obrigatórios para os planos de saúde, da Dermolipectomia das demais áreas do corpo afetadas com o ganho excessivo de peso, como coxa, braços e mama.

Desde 2010, o vice-presidente da SBCP, Wilson Cintra Junior, em conjunto com outros  especialistas, levou à Associação Médica Brasileira (AMB) a necessidade da criação de novos códigos para a inclusão da braquioplastia pós-bariátrica, mastoplastia pós-bariátrica e mastoplastia masculina (correção de ginecomastia), além da atualização do código de dermolipectomia abdominal, o único já existente. “Nós fizemos os códigos e, após quatro anos, eles foram aprovados”, afirma Cintra Júnior. Os códigos foram incluídos na tabela de 2018 e agora fazem parte da Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), da Associação Médica Brasileira (AMB). “Eles existem como códigos, porém, a outra fase é que sejam reconhecidos pelos planos de saúde”, afirma o vice-presidente da SBCP.

Favorável à incorporação de todos os procedimentos de cirurgia plástica pós-bariátrica no rol da ANS, André Cervantes destaca que, do ponto de vista legal, as cirurgias são consideradas  reparadoras e, portanto, têm de ser custeadas pelas operadoras. “A lei interpreta que a cirurgia plástica realizada após grandes emagrecimentos – mesmo que seja um emagrecimento sem, necessariamente, o paciente ter feito uma bariátrica – tem de ser coberta pelo plano de saúde”, afirma. Ele ressalta que, com base nessa interpretação, o poder judiciário é categórico ao julgar ações movidas pelos beneficiários e é praticamente unânime ao decidir em favor do autor da ação. “Fica uma celeuma, já que alguns médicos não gostariam que esta fosse considerada uma cirurgia reparadora, para que assim possa ser cobrado de forma particular. Mas, em todas as instâncias da Justiça, já está pacificado que se trata de uma cirurgia de cunho restaurador”, ressalta Cervantes.

Na lista de quem é desfavorável à incorporação de mais procedimentos no rol da ANS, João Medeiros de Tavares, membro do Serviço de Cirurgia Plástica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que o principal entrave é o valor pago pelos planos de saúde: “Isso é um desestímulo para cirurgiões plásticos e até mesmo residentes. O trabalho da Sociedade na ANS deve ser para ter um valor de procedimento diferenciado e que passe a considerar a cirurgia como de alta complexidade”. A opinião é compartilhada por Alfredo Donnabella, responsável pelos residentes do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Felício Rocho. “Sou contra a inclusão de novos procedimentos, acho um tiro no pé. Em 2008, a ANS determinou que os convênios teriam de arcar com os custos de uma dermolipectomia abdominal, e a remuneração é muito baixa. A maioria dos pacientes que deseja se submeter a essa cirurgia opta por fazer de forma particular, possibilitando ao cirurgião um ganho financeiro melhor.”

Sobre a baixa remuneração dos planos de saúde, o presidente da Regional do Rio de Janeiro da SBCP, André Maranhão, lembra que os planos de saúde estão vivendo uma situação que destoa da realidade, ao falar de uma cirurgia única para a reparação abdominal. “Antigamente, quando se propôs o código de dermolipectomia abdominal, falava-se de uma retirada do excesso de tecido em avental sobre a genitália. Hoje, não se trata disso, mas de uma flacidez que é global, circunferencial, e isso gera várias necessidades de adaptações”, afirma o presidente da SBCP-RJ. Ele explica que o procedimento exige a associação de lipoaspiração e a extensão de cicatriz para o dorso, gerando um trabalho mais amplo e delicado para a equipe na sala de cirurgia. “Proporcionalmente, o que é pago para um cirurgião bariátrico é 10 vezes maior do que para um cirurgião plástico fazer a correção dessas áreas. Não é justo nem proporcional.”

“Proporcionalmente, o que é pago para um cirurgião bariátrico é 10 vezes maior do que para um cirurgião plástico fazer a correção dessas áreas. Não é justo nem proporcional.”

André Maranhão
Presidente da SBCP-RJ

É com base nessa constatação que Daniel Regazini, cirurgião plástico de serviços particulares em Campinas (SP), conta que sua relação com os planos de saúde é de coexistência, uma vez que sua função é ajudar seus pacientes, em especial aqueles que não têm condições de pagar pela cirurgia de forma particular. “Defendo que seja colocado no rol da ANS não apenas os procedimentos de pós-bariátrica, mas muitas outras coisas que o cirurgião plástico faz. Sou do time que tem de entrar, mas é o cirurgião que vai definir se ele vai ou não se submeter a isso.” Ele diz defender a normatização com os convênios para pôr fim à intermediação de empresas privadas que atraem jovens cirurgiões para realizar os procedimentos ofertados a valores mais baixos em clínicas populares, mas que no final recebem uma remuneração menor do que se fossem prestadores de serviços das operadoras. “É muito melhor para o jovem cirurgião trabalhar para os convênios e receber por uma tabela regulamentada do que entrar na lábia dessas empresas”, alerta o especialista, afirmando que uma verdadeira briga é travada entre a sociedade civil e as operadoras, mas sem muito sucesso. “Onde uma dessas empresas fecha, abrem pelo menos mais duas.”

Como apenas a dermolipectomia abdominal faz parte do rol da ANS, uma situação que tem sido cada vez mais comum é a judicialização, uma vez que os pacientes que possuem convênios obtêm liminares judiciais garantindo a realização das outras plásticas pós-bariátricas, aponta o professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e editor do Plastiko’s, Dr. Pedro Coltro.

“Esse fato pode trazer preocupação para a equipe médica e para o hospital, pois muitos profissionais e instituições têm receio de realizar cirurgias por meio de a liminar. E quando as fazem, geralmente exigem remuneração antecipada pelo receio da liminar judicial ser futuramente derrubada por recurso interposto pelo plano de saúde”, afirma Coltro. Atuando no mesmo serviço, Marina Junqueira Rosique pontua que, com a realização média de uma cirurgia por semana no setor público, os residentes concluem a especialização com um volume considerável de operações pós-bariátricas, estando capacitados para as técnicas mais recentes. “Aqui, os residentes saem bem formados. Participamos de congressos para ter as informações mais novas e importantes sobre os procedimentos”, revela Marina. Segundo a especialista, o número de procedimentos que a equipe consegue realizar é insuficiente para atender à demanda do serviço, que recebe também o encaminhamento de pacientes de cidades vizinhas. “A fila é de quatro a cinco anos.”

O tesoureiro da SBCP Ceará, Harley Cavalcante, foi responsável por estruturar o primeiro Serviço de Cirurgia Plástica Pós-Bariátrica de seu estado, no Hospital César Cals, em Fortaleza, e não esconde a insatisfação com a diminuição do atendimento nos serviços. “A primeira coisa que vejo é o descaso do poder público e da ANS com esse paciente. Não há interesse em trazer benefícios. Temos ótimos hospitais universitários, mas ainda é muito pouco. Hoje, no estado do Ceará, não existe um serviço de pós-bariátrica”, critica o especialista, que atende pacientes com indicação de pós-bariátrica de convênios e particulares em sua clínica privada.

Com mais de 500 conferências em 40 países sobre a cirurgia plástica pós-bariátrica no currículo, Carlos Roxo, do Hospital Federal do Andaraí, no Rio de Janeiro, endossa o coro dos profissionais que defendem a plena cobertura dos procedimentos de cirurgia plástica pós-bariátrica pelos planos de saúde. De acordo com ele, a interpretação do rol da ANS define que todos os procedimentos causadores de algum tipo de problema aos pacientes devem ser cobertos.

“Uma mama com uma ptose que causa assadura ou micose, um braço extremamente inconveniente ou uma perna que atrapalhe a higiene também devem ser consideradas cirurgias reparadoras”, firma o especialista, que atende entre 50 e 80 pacientes por ano em seu serviço, em uma média de 150 cirurgias.

PERSPECTIVAS

Uma das opções criadas por alguns grupos independentes Brasil afora foi negociar tabelas mais justas com as operadoras, visto que os próprios gestores observam que, no conceito ainda vigente de pagamento por tratamento (fee-for-service). Muitas empresas estão sucumbindo financeiramente e uma solução é ter menores taxas de sinistralidade (menos complicações). Recentemente, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo (SP), inaugurou uma Unidade referenciada – Vergueiro – aos planos de saúde e formou um corpo clínico fechado exclusivo para realizar cirurgias eletivas das operadoras por “pacotes”.  “Isso proporciona maior previsibilidade de custos e potencialmente aumenta os honorários médicos, modelo que já está sendo utilizado nos EUA e principalmente na Europa”, relata o Dr. André Cervantes, que importou o modelo da Alemanha para o recém-criado Ambulatório de Cirurgia Plástica Pós-Bariátrica que coordena.

O pontapé inicial da pós-bariátrica

 O surgimento dessa nova modalidade de pacientes, que chegaram aos consultórios dos cirurgiões plásticos com uma demanda ainda pouco habitual – a retirada do excesso de pele após a cirurgia bariátrica -, levou grandes nomes da especialidade brasileira a se debruçarem nos estudos das técnicas na última década do século passado para atender de forma plena o número de pacientes que aumentava ano após ano. Com a necessidade de nortear a especialidade brasileira, em 2004, durante o 41º Congresso Brasileiro de Cirurgia Plástica, realizado em Florianópolis (SC), os especialistas da SBCP, liderados por Roberto Kaluf, fundaram o Capítulo de Cirurgia Plástica Pós-Bariátrica. No ano seguinte, durante a 42ª edição do evento, em Belo Horizonte (MG), aconteceu o primeiro curso do Capítulo, que atraiu a atenção de especialistas do País inteiro, que lotaram a sala, com pessoas sentadas até no chão.

O primeiro serviço público multidisciplinar montado para o atendimento dos pacientes que queiram se submeter à cirurgia bariátrica e, consequentemente, à cirurgia plástica reparadora, foi criado em Goiás por Roberto Kaluf, que recebeu a missão da Secretaria Estadual de Goiás há 20 anos. “Em 1999, montamos um serviço multidisciplinar dentro do Hospital Geral de Goiânia para atender os pacientes obesos mórbidos e que passavam por spa e atendimento das cirurgias bariátricas. A decisão ocorreu porque os pacientes estavam ficando muito caros para os cofres públicos, por permanecerem seis meses a um ano no spa para emagrecimento”, relata Kaluf.

Atual regente do Capítulo de Pós-Bariátrica e chefe do Serviço da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp), Flavio Mendes tem nas mãos a missão de manter o Brasil no topo da lista de países mais evoluídos nas novas técnicas e entendimento sobre o procedimento. “Nos últimos seis anos, o que mudou muito no País foi a possibilidade das abordagens circunferenciais, das cirurgias que corrigem não apenas um aspecto do corpo, um aspecto superior ou lateral, mas toda a circunferência corporal. Hoje, não falamos mais em fazer uma cirurgia de mama ou barriga; falamos em reajuste corporal inferior e superior”, conclui Mendes.

Matéria de capa da edição 218 de Plastiko’s

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